textos críticos: Antonio Gonçalves Filho
ANTONIO GONCALVES FILHO
Gravuras traduzem luz celestial
Jacqueline Aronis mostra novos trabalhos na exposição "Do Firmamento", na Galeria Valú Oria
Hokusai, o grande mestre gravador japonês nascido no século 18, viveu 89 anos. Costumava dizer que só foi entender o significado da natureza aos 73 anos. Levou mais dez anos para conseguir retratar pássaros, insetos e peixes sem traços de constrangimento e morreu sem atingir sua meta: fazer com que cada linha de sua gravura ganhasse autonomia. Séculos depois, uma artista brasileira tenta o impossível: gravar a Via-Láctea e transportar a luz do Sol para o papel.
São dois desafios, tão gigantescos como a missão de Hokusai, empenhado em retratar o mundo sem recorrer ao naturalismo.
Hokusai impôs sua visão lírica e acabou com a banalidade do ukiyo-e, anunciando o Japão moderno por intermédio de seus seguidores (Hiroshige, por exemplo). A brasileira Jacqueline Aronis não pretende ir tão longe. Quer apenas explorar a luz em suas gravuras, expostas na Galeria Valú Oria (Al. Gabriel Monteiro da Silva, 1.403) até o dia 22.
A remissão a Hokusai é deliberada. Há muito da tradição japonesa na exposição Do Firmamento, de Jacqueline Aronis, particularmente uma série que mostra círculos coloridos como traduções visuais do Sol. A série conserva o poder evocativo das formas arcaicas de Gyokudo, em especial sua série de ciclones. 0 japonês Gyokudo foi buscar inspiração na gravura chinesa.
A artista brasileira usa o serialismo minimalista americano, mas ambos lidam com o incidental, elegendo como tema o fluxo de energia. O ponto focal da série estelar de Jacqueline Aronis, a exemplo dos artistas japoneses, não está no objeto representado, mas na confluência de outros pontos. Num espaço mínimo ela recria a Via-Láctea ou uma paisagem marinha que poderia ter sido anunciada por Mokubei há dois séculos. Como em Mokubei, as montanhas parecem, à primeira vista, o foco principal dessa gravura. Não é o caso.
Prova evidente desse distante parentesco é a gravura Entardecer, água-tinta em que um distante barco define o equilíbrio da paisagem, rompendo com a perspectiva ocidental e recuperando a lição das nuvens de Mokubei, mais importantes que as montanhas desenhadas em primeiro plano.
Obviamente, Jacqueline Aronis vive em outros tempos. O uso da escrita em sua gravura tem significado diferente dos textos que entram como elementos formais nas gravuras de Mokubei. Nessas gravuras, os textos são meramente elucidativos. Nos trabalhos de Jacqueline, embora omitidos, os textos passam por metamorfose poética. São João da Cruz, que já mexeu com tantas cabeças modernas (a do videomaker Bill Viola, entre elas), volta a incomodar a consciência hedonista deste fim de século, inspirando toda uma série geométrica da artista, em que o triângulo se converte em luz.
O triângulo invertido forma uma ampulheta que filtra as palavras e transforma o tempo. Cria-se uma nova dimensão espacial com a gravura. O resultado lembra vagamente a espacialidade da gravura de Rosetsu. O espectador está diante de uma folha de papel de dimensões ínfimas, mas o olho não consegue se fixar num único ponto, vagando nas profundezas do espaço branco da folha. A gravura não representa. Ela existe em estado caótico, unindo imagem e matéria num único bloco, exatamente como o barco, as nuvens e as montanhas do lírico trabalho Entardecer.
Antônio Gonçalves Filho 07/05/1999, Caderno 2,
Estado de São Paulo.
Celestial Light Conveyed Through Print
Jacqueline Aronis presents her new works in the exhibit "On the Firmament", in Galeria Valú Oria
Hokusai, the great Japanese master printmaker of the 18th century, lived for 89 years. He used to say that he could only grasp the meaning of nature by the time he was 73. More than ten years were needed before he felt he shouldn't be embarrassed by his portrayals of birds, insects and fishes, and he died before achieving his goal of making each and every line in his prints self-contained. Centuries later, a Brazilian artist also attempts the impossible: to depict the Milky Way and to transduce sunlight to paper.
Those two challenges are both as grand as Hokusai's mission - resolute as he was in portraying the world without resorting to naturalism.
Hokusai imposed his lyrical vision and stamped out the banality of the ukiyo-e, thus heralding modern Japan through the work of his followers (Hiroshige, for instance). Jacqueline Aronis, in Brazil, doesn't reach for such lofty goals. An exploration of the light seems to be her sole purpose in the prints shown in Galeria Valú Oria (Al. Gabriel Monteiro da Silva, 1.403) until this month's 22nd.
The Hokusai allusion is deliberate. Much of the Japanese tradition can be found in Jacqueline Aronis' On the Firmament exhibit, especially in a series depicting colored circles as visual translations of the Sun. This series evinces the evocative powers of Gyokudo's ancient forms, particularly of his series on windstorms. In Japan, Gyokudo drew on Chinese printmaking for inspiration, while the Brazilian artist employs the American minimalistic serialism, but both artists deal with the incidental, taking the flow of energies as their theme.
The focal point in Jacqueline Aronis' stellar series, in the same manner as in the Japanese artists' works, doesn't lie in the object depicted, but in the confluence of other points. In a minimal space, she rebuilds the Milky Way or an underwater landscape that could have been concocted by Mokubei two centuries before. As in Mokubei, the mountains seem, at first sight, to be the main focus of the print. Such is not the case, however.
Evidence of this distant kinship lies in the etching Eventide, an etching in which a distant boat sets the balance for the landscape, departing from Western perspective and deferring to Mokubei and his clouds, which have a much higher prominence than the mountains depicted in the first plane.
Obviously, Jacqueline Aronis lives in a different age. The use of writing in her prints has quite a different meaning than the texts that are comprised as formal elements in Mokubei's works. In his prints, texts are merely elucidative. In Aronis' works, albeit suppressed, the texts undergo poetical metamorphoses.
John of the Cross, having stirred so many modern minds (video artist Bill Viola's, amongst them), once again disrupts the hedonistic conscience of this turn of century, inspiring a whole geometrical series by the artist, in which the triangle is transfigured into light.
The inverted triangle becomes an hourglass that sifts through words and alters time. A new spatial dimension comes into being within the print. The result is vaguely reminiscent of Rosetsu. The beholder stands before a piece of paper of minute proportions, but the eye cannot be fixed in a single point, drifting through the depths of the white sheet. The print does not depict. It exists, in chaotic state, conjoining image and matter in a single block; just the same with the boat, clouds and mountains of that lyrical opus entitled Evenfall.
(Antônio Gonçalves Filho 07/05/1999, Caderno 2, O Estado de São Paulo)